Pesquisa

Três anos após ser criada, a startup de biotecnologia ÄIO acaba de colocar no mercado seu primeiro produto: um óleo rico em gordura, fibra e proteína, elaborado a partir de resíduos agroindustriais e leveduras oleaginosas, um tipo de microrganismo. Com sede em Talin, capital da Estônia, país europeu localizado às margens do mar Báltico, a empresa foi fundada pela biotecnóloga paulista Nemailla Bonturi e pelo bioengenheiro estoniano Petri-Jaan Lahtvee, pesquisadores da Universidade Tecnológica de Talin (TalTech).

Com composição similar à dos óleos vegetais tradicionais, o novo produto é apresentado na forma de pó – no jargão do setor, é um óleo encapsulado – e já obteve autorização das autoridades regulatórias europeias para uso como ingrediente na fabricação de cosméticos. Uma segunda inovação, um óleo líquido de cor vermelha batizado de RedOil, destinado ao setor de alimentos, encontra-se em estágio avançado de desenvolvimento. A previsão é enviar um pedido de liberação aos órgãos regulatórios da Europa até o fim do ano.

Os óleos microbianos – ou single cell oils (SCO) –, como são conhecidos, podem se tornar uma alternativa à gordura animal e aos óleos vegetais, como o de palma, que está presente em cerca de 50% dos alimentos embalados e até 80% dos cosméticos e produtos de higiene. Se ganhar escala, podem ser usados para a fabricação de biodiesel e do combustível sustentável de aviação (SAF), rota tecnológica em adoção pela indústria aeronáutica para reduzir a pegada de carbono do setor aéreo.

“Somos uma das empresas pioneiras no mundo nesse mercado”, comemora Bonturi, que se mudou para a Estônia em 2016, ao finalizar o doutorado. Ela integrou a primeira turma de graduação em biotecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, e fez mestrado e doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação do engenheiro químico Everson Alves Miranda, estudioso de óleos microbianos no país.

“O foco do meu doutoramento era estudar os óleos microbianos como matéria-prima para a produção de biodiesel. Depois de defender minha tese, a instabilidade política no país [em 2016] me impulsionou a buscar oportunidades na Europa. Encontrei uma vaga na Universidade de Tartu, na Estônia, para pesquisar leveduras como fábricas microbianas, em um grupo liderado por Petri [Lahtvee]. Os requisitos eram os da minha expertise: biologia sintética e bioprocessos”, recorda-se.

A colaboração com Miranda continuou e vários doutorandos da Unicamp receberam bolsa de estudo para fazer parte de suas pesquisas na Estônia. “Petri começou a se interessar por leveduras oleaginosas, que se tornaram o principal tema de investigação do grupo. Com os avanços da pesquisa, percebemos que o óleo microbiano tinha aplicações com maior potencial econômico nos setores de alimentos e cosméticos. Em 2022, quando já havíamos nos transferido para a TalTech, fundamos a ÄIO”, recorda-se Bonturi.

Vantagens dos microbianos

Os óleos microbianos podem ser produzidos não apenas por leveduras – a ÄIO usa em suas formulações Rhodotorula toruloides –, mas também por bactérias, fungos e algas oleaginosos, denominação dada a microrganismos que contêm mais de 20% de sua massa seca em lipídios. “Seus principais componentes são os triacilgliceróis, moléculas que ao serem esterificadas [um tipo de reação química envolvendo um ácido graxo e um álcool] podem resultar no biodiesel, e os carotenoides, que são compostos pigmentados lipossolúveis, presentes em vegetais e alimentos de origem animal”, explica Miranda, que se aposentou no ano passado, mas continua coorientando alunos de doutorado nessa linha de pesquisa.

Duas importantes vantagens desses óleos sobre os vegetais, ressalta o engenheiro, são a não competitividade por terras agricultáveis produtoras de alimentos e a mitigação de emissões de carbono na atmosfera. Estima-se que o mercado de óleos vegetais e gordura animal produza mais de 1 milhão de toneladas de dióxido de carbono (CO₂) por ano – em 2023, foram gerados no mundo cerca de 53 gigatoneladas de CO₂ equivalente, medida internacional que estabelece a equivalência entre todos os gases de efeito estufa (metano, óxido nitroso e outros) e o CO₂. “Nossos óleos e gorduras usam entre 74% e 97% menos terra do que os convencionais e são produzidos de forma sustentável, reduzindo consideravelmente as emissões de CO₂”, afirma Bonturi.

O menor tempo para a fabricação é uma das características dos óleos microbianos. Enquanto a produção de óleos vegetais depende do plantio, cultivo, colheita e processamento de plantas oleaginosas – um processo que leva meses ou anos, demanda elevado gasto de água e ocupa extensas áreas –, os óleos microbianos são produzidos em algumas horas em reatores, tanques onde são colocados os microrganismos e um substrato que servirá de alimento para eles crescerem.

“Em termos bem simples, seria como se, em vez de transformar açúcares em álcool, como acontece no processo tradicional de fabricação de cerveja ou vinho, a levedura se alimentasse do açúcar e engordasse. Naturalmente, são vias metabólicas diferentes”, afirma Bonturi. “Depois do cultivo, separamos e coletamos as leveduras. No caso da biomassa seca de nossa levedura [o óleo encapsulado], temos uma fase de secagem. Para a obtenção do óleo líquido, é preciso adicionar uma etapa de extração após a coleta das leveduras.”

Diversos substratos podem ser usados para o cultivo, como cana-de-açúcar, amido de milho ou resíduos das indústrias alimentares, agrícolas e madeireiras. A ÄIO usa serragem, o principal subproduto gerado na Estônia, rico em xilose, um tipo de açúcar. “Os microrganismos não precisam ser cultivados a partir de resíduos, mas o uso dessa matéria-prima contribui para a sustentabilidade ambiental e econômica”, destaca Miranda, que recebeu apoio da FAPESP para a realização de suas pesquisas.

A fase de cultivo do microrganismo oleaginoso, de acordo com o engenheiro, é um ponto-chave no sucesso e na economia do processo. “O desafio é ter meios de cultura com fontes de carbono e energia, contidas nos açúcares, de baixo custo que permitam alta produtividade do biorreator”, relata Miranda. Na etapa de recuperação e purificação do bioproduto, ele destaca, é importante não utilizar solventes tóxicos.

“Usar microrganismos para converter compostos de baixo custo, como resíduos da agroindústria, em proteínas, óleos ou outras moléculas de alto valor agregado é uma estratégia interessante para não precisar recorrer a fontes tradicionais, como animais e plantas”, destaca o engenheiro químico Andreas Karoly Gombert, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, especialista em leveduras. “Desde que a natureza das moléculas seja a mesma ou parecida, óleos microbianos podem ser uma opção para substituir óleos vegetais na fabricação de cosméticos, alimentos industrializados e itens de higiene.”

A ÄIO dispõe de uma planta-piloto com capacidade de 300 litros. A estrutura é usada para testes de leveduras e otimização de processo. A produção comercial, no momento, é contratada de fábricas terceirizadas. Dentro de dois ou três anos, a startup pretende contar com uma planta própria para a fabricação em escala industrial. Ao mesmo tempo, planeja licenciar a tecnologia para interessados em produzir o insumo. A escalabilidade da produção ainda é um desafio a ser vencido pela empresa.

Até o momento, a ÄIO, formada por 20 funcionários e pesquisadores, já arrecadou mais de € 8 milhões em fomento de pesquisa e € 7 milhões em capital privado. No fim de 2024, a companhia venceu a categoria de Alimentos na Baltic Sustainability Awards, evento que reuniu mais de 70 empresas inovadoras do Báltico. Na mesma época, Bonturi foi agraciada pela Unicamp com o prêmio Egresso Destaque.

“Foi um reconhecimento à trajetória dela como pesquisadora. Desde pequena, Nemailla sonhava em tornar-se cientista”, comenta Miranda. “Ela tem grande capacidade de aprender, interagir com diferentes grupos e aceitar desafios. Teve a ousadia de ir para um país desconhecido e, em pouco tempo, passou de uma pós-doc do Petri para gerente do laboratório de pesquisa e sócia dele na ÄIO.”

Cerca de 20 artigos sobre o tema foram publicados pelo grupo de Miranda e Bonturi. A conversão de xilose em óleo microbiano por R. toruloides mediante diferentes condições de cultivo, como uso de luz e adição de peróxido de hidrogênio, foi o foco de um trabalho na Frontiers in Bioengineering and Biotechnology, em 2020. “A irradiação de luz resultou em 70% mais carotenoides e 40% mais lipídios em comparação com as condições então estabelecidas como ideais de crescimento. Já a presença de peróxido de hidrogênio, a popular água oxigenada, não afetou a produção de carotenoides, mas culminou em alto teor de lipídios”, resume Miranda.

Um trabalho mais recente, publicado na Journal of Cleaner Production, em 2022, apresentou uma análise técnico-econômica-ambiental da produção integrada de bioetanol de primeira geração, bioeletricidade e biodiesel em uma biorrefinaria de cana-de-açúcar, na qual o óleo microbiano da levedura R. toruloides alimentaria a unidade de biodiesel. Os autores concluíram que o processo integrado exibe um desempenho econômico positivo, indicando ser uma opção industrial viável.

“A equipe do professor Miranda tem alta relevância na construção de conhecimento científico no campo da engenharia microbiana com foco no desenvolvimento de biorrefinarias”, comenta o biólogo Rafael Silva Rocha, fundador da empresa de big data genômico ByMyCell e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) entre 2015 e 2022. “Nosso grupo focava o desenvolvimento de abordagens de biologia sintética para uso de óleos microbianos como precursores de moléculas de alto valor agregado”, diz.

Combustível de aviação

No Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, pesquisadores avaliam a produção do combustível sustentável de aviação a partir de óleos microbianos derivados do caldo de cana. O processo envolve a extração e o tratamento físico-químico do caldo, seguido da conversão de açúcares em lipídios por leveduras oleaginosas, conforme artigo publicado na Bioresource Technology, em janeiro.

“O processo de hidrotratamento de ésteres e ácidos graxos [Hefa] é a principal tecnologia usada para a produção do SAF, mas a disponibilidade limitada das matérias-primas convencionais e as possíveis implicações para a sustentabilidade restringem sua escalabilidade”, diz a engenheira química Tassia Lopes Junqueira, líder da pesquisa. Nesse contexto, diz ela, óleos microbianos são uma alternativa promissora. “Um obstáculo a ser superado é o alto custo de produção do óleo microbiano, devido à necessidade de biorreatores aeróbicos de grande porte”, afirma Junqueira.

De acordo com o estudo da Bioresource Technology, o custo de produção de SAF a partir de óleos microbianos é estimado entre US$ 1,83 e US$ 3 por litro, valor até quatro vezes superior ao querosene de aviação, de origem fóssil, mas compatível com outras rotas do combustível sustentável. “O uso de óleos microbianos pode aumentar em quatro vezes o rendimento de SAF por hectare em comparação ao óleo de soja”, ressalta Junqueira. Com base nesses resultados, os próximos passos da equipe do CNPEM incluem a prospecção e a manipulação genética de leveduras oleaginosas da biodiversidade brasileira. “Esse esforço é fundamental para viabilizar a produção de óleo microbiano em larga escala e aumentar a sua competitividade econômica.”

Yuri Vasconcelos – Pesquisa Fapesp 

Veja mais